Este artigo, traduzido da notícia original do The Telegraph, poderia ser escrito sobre Portugal, onde o espresso tradicional ronda os 0,70€ e a comunidade de café de especialidade nota dificuldade em crescer o seu público quando apresenta um valor justo pelo espresso.
As razões para o custo reduzido do espresso em Portugal são as mesmas apresentadas em Itália – baixos custos iniciais, com as grandes empresas de café comercial a pagar o investimento necessário para montar uma cafetaria, evasão fiscal, com os “cafés” a serem pagos a dinheiro e sem fatura, a população a pedir um café espresso como um direito e a considerar que é cultural, e, claro, a necessidade de manter o preço alinhado com a concorrência.
As cafetarias de especialidade trabalham, assim, para mostrar a qualidade do seu café, a formação dos seus baristas e providenciar uma experiência em torno do café espresso, que valoriza o café, a bebida e toda a cultura associada, para apresentar um preço justo pelo café espresso.
A Batalha pelo espresso de 1€
Tradução de Vitor Rodrigues. Fonte: The Telegraph.
O espresso é sagrado em Itália. É normal entrar num café, tomar uma dose rápida e voltar a correr para o escritório. No Reino Unido, onde uma chávena média de café custa cerca de £4,40, de acordo com a empresa de estudos Finder, com alguns valores superiores a 5 libras.
Os italianos desfrutam de um dos cafés mais baratos da Europa, custando em média €1,5 por chávena. Um café espresso pode ser encontrada por apenas um euro em muitos cafés italianos. Mas apesar de uma cultura imóvel em que o acesso barato à cafeína está consagrado, o estimulante barato dos italianos está ameaçado.
Então, como é que a Itália conseguiu resistir às pressões inflacionistas globais e à escassez de grãos de café para manter o seu café tão barato – e estarão esses dias a chegar ao fim?
Baixos custos iniciais
Alguém que queira abrir um café no UK enfrenta enormes custos iniciais, como equipamento e mobiliário, que deverá recuperar nas vendas de café. Em Itália, a maioria dos proprietários não precisa de se preocupar com estes custos, explica Andrea Pettinari, proprietário e gestor do Caffe dell’Arte em Cagliari com o seu sócio.
“As torrefações oferecem-se para cobrir os custos iniciais – pagam máquinas de café espresso, chávenas, guardanapos, etc.”, diz. “Em troca, as cafetarias assinam um contrato a prometer comprar semanalmente uma determinada quantidade de grãos a um determinado preço. Mas há um custo escondido: as torrefações geralmente cobram uma taxa acima do justo e fazem com que os cafés se comprometam a comprar muito mais café do que realmente precisam.”
Recentemente, o negócio de Pettinari rompeu com este modelo de propriedade e tornou-se independente. Mas isso é extremamente raro, sublinha.
“Diria que cerca de 99% dos proprietários em Itália pertencem essencialmente a empresas de torrefação – as cafetarias independentes são muito raras aqui. As pessoas pensam que temos muitas cafetarias independentes e nenhuma cadeia de cafetarias, mas a realidade é que as empresas de café controlam a grande maioria delas.”
As cafetarias italianas também conseguem consumir volumes de café muito maiores, acrescenta Marco Cappellari, que gere a cafetaria de especialidade Melaleuca, em Florença.
“Aqui existe uma cultura de walk-in-walk-out, o que significa que as cafetarias tendem a vender mais café do que os britânicos ou americanos”, diz. “As cafetarias muitas vezes nem sequer têm lugares sentados, e a maioria das pessoas não pedem leite na bebida, por isso é uma transação de 45 segundos. Enquanto um hipster em Londres prepara um flat white perfeito, um barista em Milão já preparou e serviu quatro ou cinco espressos por um preço total semelhante.”
A evasão fiscal é comum
A Itália lidera a Europa na evasão fiscal, de acordo com a Comissão Europeia, com uma estimativa de 14 mil milhões de euros de IVA em 2021, ou 24% do total da União Europeia. A indústria do café não é exceção, mas Cappellari defende que isso pode ser essencial para a sobrevivência de algumas cafetarias.
“Infelizmente, a pressão para evitar o pagamento de impostos pode estar fundamentalmente ligada à capacidade de existência de uma cafetaria, pelo que é algo que acontece com bastante frequência. Se cada cafetaria de uma cidade fixa o preço do espresso em €1.20, outra cafetaria pode não ter outra escolha senão fazer a mesma coisa para competir.”
As cafetarias são também frequentemente propriedade de casais ou famílias, acrescenta Cappellari, o que significa que gastar dinheiro em salários decentes não é tão preocupante como no UK, que normalmente têm de empregar pessoal externo.
Um preço político
A Itália funciona à base de cafeína – o grupo de consumidores Assoutenti estimou que os habitantes locais e os turistas consomem um total de seis mil milhões de cafés por ano nas cafetarias, bares e restaurantes do país.
Mexer nos fundamentos da indústria é tratado com ceticismo e desprezo. Mesmo pequenos aumentos de preços são sentidos de forma aguda por aqueles que consomem cinco chávenas de café por dia, e os vendedores podem enfrentar a aniquilação por os implementar, deixando-os fortemente relutantes em fazê-lo.
“O café não é visto como um produto em Itália, mas como um direito humano – as pessoas pensam que a sociedade lhes deve café”, diz Pettinari. “Portanto, tem de ser barato, porque todos deviam poder pagar. Mas se mantivermos o preço do café espresso, será insustentável para todos os intervenientes na cadeia de abastecimento – agricultores, baristas, proprietários . De repente, não há margem de lucro.”
Cappellari acrescenta: “Se subir até 1,80€ ou 2€, perdiria imediatamente os clientes, a não ser que esteja numa estação ferroviária ou numa zona turística movimentada. O negócio morreria muito rapidamente. As pessoas ditam qual será o preço.”
Tanto a Cappellari como a Pettinari gerem agora cafetarias de especialidade, o que significa que os seus clientes esperam um maior grau de qualidade e, portanto, aceitam um preço premium. Mas fazer esta transição não foi fácil, diz Pettinari.
“Aumentámos os nossos preços e agora o nosso espresso custa cerca de 50 cêntimos mais do que a média da cidade. Perdemos muitos clientes – muitos dos nossos antigos clientes habituais foram-se embora porque não conseguiam compreender, embora tentássemos fazê-los compreender as razões. Mas temos conquistado alguns novos clientes, que apreciam a qualidade e os motivos dos aumentos. O verdadeiro problema é a expectativa de um preço fixo em vez de um preço baixo”, afirma Luigi Morello, presidente do Italian Espresso Institute. “Seria impensável pedir um copo de vinho tinto ou de cerveja num bar, deixar o barman escolher e servir como quiser, e pagar sempre o mesmo preço.”
O café espresso barato está ameaçado
Uma série de factores está a tornar cada vez mais insustentável a oferta de um espresso de €1 por parte das empresas. Os preços dos grãos de café subiram 48% no ano passado e quase triplicaram desde os mínimos em 2018, com as alterações climáticas a tornarem as condições para o seu crescimento cada vez mais hostis.
Micah Sherer, da empresa de torrefação Skylark Coffee, afirma: “Os dois países que produzem a maior parte do café do mundo, Brasil e Vietname, tiveram colheitas fracas devido às más condições de chuva, o que exerce pressão ascendente sobre o preço. Mas dentro de alguns anos será pior devido às alterações climáticas.”
Pettinari acrescenta: “O café é uma planta muito delicada e requer certas condições para produzir bons frutos. É necessária uma determinada altitude – mais de 1.600 metros acima do nível do mar – e um clima tropical. Os agricultores são obrigados a subir na altitude das montanhas, ano após ano, e como as montanhas são pirâmides, quanto mais se sobe, menos espaço agrícola se tem.”
Os ataques a navios de carga no Mar Vermelho por parte dos rebeldes Houthi no início deste ano também atingiram o fornecimento de grãos de café, contribuindo para um aumento dos preços.
Itália pode ser forçada a aceitar finalmente uma ‘terceira vaga’ de café
A “terceira vaga” do café, um movimento centrado na qualidade superior, pela qual os consumidores estão dispostos a pagar preços mais elevados, chegou ao UK no início da década de 2000. Mas para os italianos, a mudança cultural de um espresso ultra-barato para um cappuccino de 4 euros ainda não pegou.
“Antes da terceira vaga, não havia muita cultura de café no UK – era algo novo, por isso arrancou”, explica Pettinari. “Em Itália, há uma cultura de café tão forte que primeiro precisávamos de derrubar esse muro antes de podermos fazer algo novo. Mas as grandes empresas de café não querem que isso aconteça, porque vão perder lucros. Atualmente, podem comprar um saco de café verde por um dólar o quilo e vendê-lo por 25 dólares nas cafetarias.”
Mas arrastar os italianos para a terceira vaga do café e para os preços mais elevados a que o resto da Europa se habituou pode revelar-se uma tarefa de infrutífera, afirma Luigi Morello, do Italian Espresso Institute.
“Os gostos alteram-se, incluindo os dos italianos, mas passar subitamente de um café encorpado, que tende a ser equilibrado com notas de frutos secos e torradas, para um menos encorpado, com aromas florais, por vezes frutados, e com sabor ácido, não é um passo fácil. Os italianos bebem espressos, não bebidas à base de leite, e isso também faz diferença no sabor.”
Mas Pettinari defende que um aumento dos preços que reflicta uma maior qualidade do produto e alterações na cadeia de abastecimento devem acontecer mais cedo ou mais tarde.
“Os preços super baratos do café espresso não devem ser sustentados. Diminui a qualidade do café ao longo do tempo, mantendo-o a um determinado preço. Na verdade, não mudou em 25 anos, enquanto tudo o resto subiu quatro ou cinco vezes – os preços do café deveriam reflectir isso, se for devidamente adquirido e preparado por um bom barista numa boa máquina.
“Não para enganar as pessoas, mas para refletir a qualidade do produto que está a vender.”
Fonte/Traduzido de: https://www.telegraph.co.uk/money/consumer-affairs/battle-italy-one-euro-espresso/